domingo, 18 de março de 2012

O Futebol Consciente e a excomunhão do Maestro

A manifestação de uma sinfonia sem Maestro. Esta é a melhor definição do jogo preconizado pelo Barcelona de Guardiola. É, sem qualquer dúvida, a equipa que mais análises à sua abordagem ao jogo promove, sendo sujeita a inúmeros crivos. No entanto, pretendo abordar a construção da identidade do conjunto orientado por Guardiola numa perspectiva temporal intrínseca e exclusiva do futebol manifestado pelos catalães.



Não raras vezes, distinguimos uma faúlha de civilização por entre a animalidade que sobrevive, no estado de selvajaria, ou assim muito próximo, nas equipas de futebol. Não passam de farrapos, porém, sobranceiros à gestão primitiva, os exemplo de que falo: quatro ou cinco jogadores, se tivermos sorte, que, de forma descontínua, emprestam algo de sofisticado aos conjuntos onde se encontram, criando a ilusão de que algo diferente se passa; são sociedades secretas, ou a isso dão ares, facilmente perecendo à tirania estulta dos resultados. Do efeito colateral das suas acções individuais, encontramos este vislumbre, mas apenas se houver um número razoável de elementos, porque se não... bem, se não, nem esse vislumbre apreciamos. E isto, apesar de trágico, não acrescenta nada de novo ao que temos escrito, bem sei, mas cuja presença neste texto se apresenta como evidente.



Não é novidade a nossa insubordinação contra a definição vigente do conceito colectivo que prospera no futebol; não acredito que a esmagadora maioria dos treinadores exorcize o desempenho individual em si mesmo, ou seja: apesar de pedirem aos seus elementos que joguem de forma colectiva, analisam, e tomam decisões sobre os jogadores em função dos seus desempenhos individuais, daquilo que de explícito sobra do comportamento destes em acções concretas. E este problema advém da forma descontinuada como lêem o jogo, como o conceptualizam.



Daqui surge o primeiro obstáculo ao aparecimento da identidade no colectivo. A identidade de uma equipa não é apenas uma imagem que se cria e se impôe àquele conjunto de jogadores; tem de nascer do eco que esta imagem, esta filosofia, provoca nos jogadores. Daí a necessidade de construir um jogar "inteiro", uma intenção deliberada de construir a cada instante, a cada relacionamento com o jogo e as suas idiossincrasias, uma nova imagem do mesmo, mas que essa imagem seja sempre orientada ao estilo pretendido; é necessário que as acções sejam coerentes, que adquiram um pulsar distinto e exclusivo à filosofia que orienta cada momento, cada acção de cada elemento, permitindo uma concertação conciliadora entre os vários espaços temporais do jogo. Este é o primeiro passo para a construção de um "eu" numa equipa de futebol.




Uma identidade que ressoe em cada movimento e em cada decisão tomada.



Para equipas que assumem posturas incoerentes, ignorantes das consequências que os seus movimentos num dado momento do jogo vão promover no instante que precedem, não aceito que se fale em identidade colectiva. A identidade de uma equipa obriga a que se exija exactamente o oposto, que a cada opção tomada no presente se repercuta uma intencionalidade das situações que se criaram no passado. Necessita-se de um construir, de um sentir o jogo, tendo presente que cada decisão não se esgota em si própria, não só no mero desenvolvimento e encadeamento das acções colectivas, mas na construção de um padrão reconhecido pelos seus elementos, emergindo deste um sentimento de conhecimento, fundamental à emergência de uma identidade. A partir desta sugestão, pode-se, de forma errónea, pensar que então todas, ou quase todas, as equipas têm identidade definida: a grande maioria dos treinadores trabalha de forma minuciosa a disposição que pretende, assim como os movimentos que quer ver incluídos para diversos momentos do jogo. Nada mais errado. Isto não passa da delimitação da própria equipa, um esboço do ambiente ideal para que os propósitos sejam realçados, permitindo aos jogadores comportamentos mais objectivos, pragmáticos; almeja-se, deste modo, um equilíbrio estrutural que lhes permita tirar o máximo partido das características das partes que compõem o todo. Isto nos casos mais evoluídos, claro está. O facto de o jogo ser demasiado rico para se poder compreender todas as situações que ele nos oferece, impede porém que estes comportamentos disposicionais ofereçam ao conjunto, da parte dos seus constituintes, uma invariância de comportamentos suficientemente estável para a criação de uma identidade. A equipa quer marcar golos, também não os quer sofrer; reconhece com alguma iminência a possibilidade destas duas partes do jogo, mas não é capaz de planear, com antecedência, quando confrontada com um dado novo no jogo, uma forma de, mantendo em mente estas duas partes do jogo, preservar comportamentos que respeitem a filosofia de jogo anteriormente idealizada. E é neste aspecto "fracturante" que encontro a maior resistência à emergência de uma perspectiva colectiva.



A posse de bola, como potenciador de um pulsar invariável.



Nem sempre, de forma deliberada, quando se atinge algo de extraordinário, é ao mais brilhante alvo que se dirigem as intenções dos homens. Tão pouco sei se este é um desses casos ou não. Contudo, uma coisa é certa, a diferença que o futebol de Guardiola ostenta em relação a toda e qualquer abordagem jamais feita assenta, se não em absoluto, pelo menos em grande parte, neste aspecto: um respeito inefável pela posse de bola. A bola é o centro de todas as decisões, é a constante que permite ao jogar do Barcelona edificar a sua maior vitória: a obtenção de uma consciência, o construir de uma verdadeira identidade colectiva. Todas as decisões, movimentos, a própria disposição da estrutura, etc., enfim, todos os aspectos do jogar de Guardiola, incutem a cada elemento do seu conjunto a consciência do valor determinante da posse da bola, incomparavél a qualquer outro aspecto do jogo. A invariância deste sentimento, perante algo que é intrínseco ao próprio Futebol, a bola, permite-lhes alcançar uma perspectiva ubíqua, obrigando-os (aos jogadores, e ao próprio treinador) a abordar cada nova circunstância do jogo, cada contingência do mesmo, com uma grande coerência e respeito pelos tempos e momentos de jogo que se sucedem.




Os sentimentos e decisões após o relacionamento da estrutura colectiva com um acaso do jogo, em função da partilha de um valor que é intemporal no jogo, o valor da posse da bola, e a necessidade de a preservar, promove uma similiaridade de respostas entre os seus elementos, reconhecendo estes, entre eles, perante as várias situações com que se deparam, uma abordagem semelhante da parte dos seus colegas. Derivando da antecipação similar partilhada por cada elemento em cada momento do jogo, esta Constância permite à equipa promover disposições coerentes, mesmo perante um jogo tão propício ao acaso como o futebol. Associando esta peculiaridade a um Reconhecimento Inteiro do Jogo, assistimos ao nascimento de uma identidade verdadeiramente colectiva, algo que até aos dias de hoje é inédito.



Pela primeira vez, na minha opinião, a abordagem ao jogo é despida de funções específicas: não existem uns para defender, outros para marcar, outros para assistir, etc. E, por mais paradoxal que isto possa parecer, alcança-se com o melhor futebol do mundo, com o que mais encanta, ou assim devia ser, o fim do romance, do misticismo que envolve o Número Dez: Acabou-se o espaço dos jogadores que resgatam a equipa da mediocridade, que pensam, em exclusivo, ou quase, o futebol do conjunto que o alberga. É, no entanto, uma extinção que serve e sublima a própria génese do conceito, catapultando-o para um “organismo” que o exponencia a limites que o transcendem.

3 comentários:

Anónimo disse...

Boas Gonçalo,

É o que acontece quando se entende e se interage com o "caos" que é o jogo. Ser organizado dentro de momentos desorganizados.

Um projecto de jogo bem pensado terá de ser por esta perspectiva. Os princípios terão de ser comuns, os modos de manifestação dos mesmos terão de ser por todos interpretados e experenciados, e mesmo que seja notória alguma especificidade de comportamentos em determinados espaços/tempo, não existem limites de acção. o Objectivo é igual, e pensado de forma igual, apesar de poder surgir de modos diferentes, pela aleatoriedade que o jogo provoca.

Esta equipa mais do que responder ao caos competitivo sabe criar o mesmo e percebê-lo como fundamento para a sua organização.

Um dia depois de um Barcelona x Arsenal escrevi sobre isso, onde apelidei a equipa do Barça de "Desorganização Organizada" e a do Arsenal de "Organização Desorganizada".

Muito bom texto,

Abraço, Jorge D.

Gonçalo disse...

Boas, Jorge.

Sobre o lado caótico do jogo, publiquei um texto, em 2008, salvo erro, visando a importãncia da criatividade para tirar partido deste aspecto do jogo. É, sem qualquer dúvida, um texto assente numa perspectiva mais "primitiva" da apresentada neste texto, mas, de certa forma, pode funcionar como um prelúdio para o mesmo.

É capaz de ser uma perspectiva interessante, a que assinalas sobre o Barça x Arsenal, qd tiver oportunidade vou ver se dou uma vista de olhos. No entanto, dá-me a ideia que o principal problema do conceito do Futebol defendido por Arsène Wenger é que, de alguma forma, é incompleto.
A maneira como a equipa se exibe sugere que ele, Arsène Wenger, aprecia a técnica, a parte artística do jogo, mas não dá o devido valor à posse da bola. Este facto, dá a ideia que, por vezes, ele cruza os mesmos trilho do Barça, mas, na minha opinião, ele nem se apercebe como o alcança. Talvez aqui esteja a nascer tema para um novo post, quem sabe?

Um Abraço, Jorge!

Anónimo disse...

Sim eu também que é o defeito do projecto de Wenger. A única coisa que se identifica com o Barcelona é a forma como alguns dos jogadores se comportam e se relacionam em alguns momentos do jogo. Mas é o que dizes, não tem sequência, é mais fruto da criatividade individual de alguns dos seus elementos, que propriamente de um conceito colectivo. Isto com bola. A defender então a diferença é abismal. Até porque no fundo o Barcelona, defende, também com a bola. É a melhor forma de defender quanto a mim, retirando jogo ao adversário e não (somente) reagir em função da acção opositora.

Neste Barcelona todos são "10", todos são "6", todos são "2", todos são "tudo". E é exactamente essa percepção que os torna diferentes, bem à frente do seu tempo.

Enquanto uns matam a cabeça a delinear estratégias para anular e vencer adversários, outros percebem a estratégia como um todo e não como um plano isolado para criar um determinado efeito.

Devias aparecer mais vezes.

Abraço, Jorge D.