sábado, 16 de maio de 2009

Barcelona: para além da superfície

O assunto já vai longe - bem sei - mas o tempo é escasso e não me permitiu abordar o tema na altura devida.

Luís Freitas Lobo, na sua crónica n'A Bola, diferenciava o futebol mais "táctico" do Chelsea do futebol mais intuitivo do Barça. Não escondo a irritação que o texto despoletou em mim. Em que medida uma equipa que apenas consegue contemplar uma parte do jogo é mais forte "tacticamente" que uma outra que no seu jogo contempla de forma clara e una todos os momentos do jogo? O mesmo é dizer que uma pessoa que seja saudável e atraente não pode ser muito interessante. A sensação que fica é que o futebol do Barcelona, a essência do mesmo, está condenado a uma subavaliação aviltante devido à forma brilhante com que é interpretado. O clube catalão apresenta um modelo de jogo cujos alicerces vão muito para lá do que as primeiras impressões do mais "superficial" adepto consegue apreender.

Guardiola é provavelmente dos treinadores mais calculistas e "frios" que o futebol jamais conheceu. É um treinador que não arrisca nada, ou seja, é um treinador que não entrega nenhuma variável do jogo à sorte. Por isso, no modelo de jogo dele, a posse de bola é elemento fundamental. É a única maneira de garantir que o jogo decorre sob os nosso desígnios. Não é fruto do acaso, ou da qualidade individual, a superioridade que a equipa do Barcelona demonstra neste "pormenor estatístico". E não me venham dizer que uma grande percentagem neste campo, relativamente ao adversário, não significa nada. Significa tudo. Significa uma maior probabilidade de atingir o golo e, por consequência, uma menor probabilidade de o adversário obter o golo. Conseguem fazer golos sem ter bola?

É a melhor maneira (a mais eficaz) de gerir os ritmos do jogo e de impedir que o adversário imponha o ritmo que mais lhe convém. Por isso, irrita-me este "desprezo" que a maioria dos adeptos revela por este factor. A posse da bola é a "rainha das virtudes" do melhor futebol do mundo. E agora?

Ao perceber que o jogo e os seus momentos não são separáveis, o conjunto da Catalunha consegue um posicionamento ímpar no terreno, independentemente do momento do jogo. E isso inclui um conhecimento profundo do jogo, significa compreender que a melhor maneira de controlá-lo é fazê-lo da maneira mais segura, ou seja, com a bola. E a bola assume o centro de todo o jogo do Barcelona. O posicionamento da equipa, a maneira como todo o conjunto se movimenta, tudo isto é acerca da bola. Agora digam lá que não é irónico que, com tanta (suposta) evolução no jogo, a maior evolução consista em explorar um dos mais antigos, se não mesmo o mais antigo elemento deste jogo. É uma questão de re-inventar o próprio jogo... Cada vez que ouço treinadores a referir que sabem tudo sobre a equipa adversária, não deixo de pensar para mim próprio: "Porreiro, e da tua equipa? Sabes tudo? E mais importante, os teus jogadores sabem todos o que fazer em cada momento, em função da movimentação do colega que tem a bola? E o da bola sabe o que fazer em função dos restantes?" Muitas equipas, com a obsessão de compreender a "personalidade" da equipa adversária, não conseguem vislumbrar a sua própria esquizofrenia.

A diferença do Barcelona para as restantes equipas é que os seus jogadores não são funções (sim, já sei que já estão fartos de ler isto por estas bandas). A equipa assume todas as funções e o facto de não existir um jogador para organizar, outro para equilibrar, outro para acelerar, etc., liberta todos os jogadores para jogarem em função das necessidades da equipa a cada momento. Mas, por outro lado, isto apenas é possivel com uma equipa que saiba o que faz e, acima de tudo, perceba por que é que o faz. Só com a compreensão total da filosofia de jogo, por parte de todos, é que é possivel uma interpretação sincronizada entre todos os elementos, acerca dos vários momentos do jogo, o que por sua vez vai permitir ao todo "moldar-se" à movimentação individual de uma das partes, e o que por sua vez se movimenta sob o "jugo" da identidade da própria equipa, permitindo uma assimilção recíproca entre o individual e o colectivo.

Nietzsche defendia que o trabalho deve ser feito não por grandes ideias, ou para se ficar na História, mas sim porque é bom (tem qualidade) e porque se gosta de fazê-lo. Dá-me a ideia que o filósofo alemão não defendeu esta ideia a pensar em algo tão frívolo como um jogo de futebol, mas a verdade é que podemos aplicá-lo ao mesmo. O facto de o futebol praticado pelo conjunto catalão ser o MELHOR concede o estímulo necessário aos seus jogadores para se envolverem no projecto em que estão inseridos. Isto, aliado ao prazer que os seus elementos retiram do jogo, permite aos mesmos evoluirem, tornando-se portanto melhores jogadores porque estão inseridos nesta equipa, com estas ideias, com este treinador. Cruyff disse: "There are more coaches who can break people than there are coaches who make footballers play better football."

O Barcelona não é a máquina que é porque tem Iniesta, Messi, Henry, Etoo, Xavi, Piqué, etc. Não! O conjunto de Guardiola é o que é porque aqueles jogadores jogam nesta equipa, com este treinador. Daí que me sinta dividido. Por um lado, soa-me a uma injustiça tremenda qualquer possibilidade de Iniesta falhar a final, mas, por outro, a (forte) possibilidade de o Barcelona vencer a final da Champions, mesmo sem Henry, Iniesta e Daniel Alves, talvez servisse para "abrir" os olhos ao mundo e demonstrar que uma grande equipa se faz com GRANDE FUTEBOL, independentemente das individualidades.

2 comentários:

Ricardo disse...

Em tudo de acordo, menos o último parágrafo.

Quando dizes: "Daí que me sinta dividido. Por um lado, soa-me a uma injustiça tremenda qualquer possibilidade de Iniesta falhar a final, mas, por outro, a (forte) possibilidade de o Barcelona vencer a final da Champions, mesmo sem Henry, Iniesta e Daniel Alves, talvez servisse para "abrir" os olhos ao mundo e demonstrar que uma grande equipa se faz com GRANDE FUTEBOL, independentemente das individualidades" percebo a ideia mas um "GRANDE FUTEBOL" é praticado por aqueles que o sabem executar de forma magistral. Colocares uma peça nova neste engrenagem - digamos: um jogador médio, que entendesse os princípios de jogo do Guardiola, que treinasse com esta equipa desde o início da época mas sem a capacidade para jogar futebol que Iniesta tem - seria, ainda assim, mudares-lhe um vector. E um vector fundamental. Não digo que sem Iniesta este Barcelona não é capaz de ganhar a Champions (claro que é capaz) mas discordo da ideia de que a equipa do Barcelona é uma grande equipa "independentemente das individualidades". É claro que o Barcelona é o que é porque colectivamente é fortíssimo mas é-o por possuir a simbiose perfeita entra a interpretação correcta do sentido colectivo com a qualidade imensa dos jogadores que a executam. Volto ao princípio do teu texto e uso as tuas próprias palavras: "O mesmo é dizer que uma pessoa que seja saudável e atraente não pode ser muito interessante", ou seja, lá porque a equipa é sublime na forma como se movimenta colectivamente não quer dizer que - ideia bastante recorrente nas análises fuebolísticas - o seja "independentemente das individualidades"; É-o COM as individualidades. A interpretação perfeita dos movimentos em sintonia têm muito da qualidade única dos jogadores que os executam.

E, neste caso específico do Iniesta, diria que é fundamental. Mudar Alves ou mesmo Henry não torna a equipa substancialmente diferente do que é e de como joga mas retirar-lhe Iniesta muda bastante mais, ainda que, óbvio, o Barcelona se apresente a jogar segundo os seus princípios. A questão fundamental é que sem Iniesta o Barcelona é mesmo menos equipa. Apesar de continuar a melhor de todas, esta época.

Gonçalo disse...

Ricardo, compreendo o que queres dizer e até concordo com o que dizes. A questão aqui coloca-se na nfase que deve ser colocada na estrutura colectiva, sobretudo nesta, e não nas individualidades. Obviamente que o Barcelona, e o seu futebol, apresentam mais qualidade com um jogador como o Iniesta, agora não me parece possível separar a qualidade individual do jogador da equipa onde ele evolui. O Iniesta seria um jogador "inferior" ao Iniesta do Barcelona do Guardiola se "habitasse" outro tipo de futebol. Porque o Iniesta é o típico produto deste modelo de jogo. Por isso eu defendo que é processo coorelacionado: a evolução de um jogador depende do todo onde está inserido, e a evolução do conjunto depende dessa mesam evolução. Mas isto apenas é possivel sob a luz deste paradigma de futebol.
Uma pergunta Ricardo: Quais seriam os limites para o Pereirinha se ele tivesse a oportunidade de evoluir neste futebol futebol defendido pelo Barça?

Eu defendo, com este texto, que quando um treinador se desculpa com os recursos humano disponiveis para não colocar a sua equipa num patamar mais elevado, não esta a faze nada mais do que encontrar uma desculpa para as suas limitações. O Barcelona adiciona ao facto de ser uma equipa que é muito mais do que a soma das suas individualidades, o prazer que os seus intervenientes retiram do futebol que produzem. E isto, creio eu, faz toda a diferença.
Um abraço.