quinta-feira, 30 de agosto de 2007

O fim do estruturalismo

Já aqui foi dito (talvez com pouco ênfase) que a um jogador não se podem imputar responsabilidades colectivas. Há quem não perceba (e quem nunca venha a perceber) o significado desta afirmação, mas pretendo deixar claro, de uma vez por todas, que a um jogador só se podem exigir responsabilidades por aquilo que ele faz individualmente. Nenhum jogador pode, por isso, ser culpado individualmente por a equipa jogar mal ou por a equipa adversária empurrar a sua equipa para a sua zona defensiva. A um jogador exige-se unicamente correcção táctica, técnica e intelectual. Se um jogador cumprir tacticamente, tecnicamente e intelectualmente, e se todos os seus companheiros o fizerem, as responsabilidades de um eventual insucesso só podem ser da equipa enquanto Todo e do treinador, porque não foi capaz de a montar exemplarmente.

Num desporto colectivo, como é o caso do futebol, nenhum elemento do colectivo tem uma missão própria. As missões são todas colectivas. Como tal, aos defesas não se pede que defendam, aos atacantes não se pede que marquem golos, aos médios-defensivos não se pede que recuperem bolas ou que segurem o meio-campo ofensivo do adversário, aos médios-ofensivos não se pede que construam o jogo da sua equipa. Tudo isto são coisas que a equipa deve fazer em conjunto. O avançado deve defender tanto como o defesa, ainda que ao defesa se exija que não falhe nesse capítulo, uma vez que não tem mais ninguém atrás dele para o fazer. O defesa deve marcar golos como o avançado, ainda que, naturalmente, o avançado tenha mais possibilidades para o fazer. Os médios-ofensivos e os avançados devem recuperar bolas como os médios-defensivos, ainda que a estes, pela sua posição em campo, se lhes peça maior aproveitamento. Os defesas e os médios-defensivos devem construir jogo como os médios-ofensivos, embora a estes, pelas suas características, estejam reservadas maiores responsabilidades. As únicas responsabilidades de cada elemento do colectivo são ocupar com exactidão a sua posição em campo (tendo em conta todas as variantes que essa posição assume consoante a posição do adversário e a posição da bola), a correcção técnica na abordagem dos lances e a tomada de decisões. Um jogador só é culpado do mau futebol da sua equipa se estiver mal posicionado tacticamente, se estiver a falhar no capítulo técnico, quer seja a nível da recepção, do passe, do remate, do tempo de salto, ou se tomar opções erradas. Assim sendo, a cada jogador só se pode pedir perfeição táctica, técnica e intelectual, com tudo o que isto acarreta: a um médio-defensivo, por exemplo, só se pode pedir que ocupe o seu espaço à frente dos defesas e nas costas dos médios-defensivos, que forneça os apoios correctos que a sua posição impõe, e que se aprume quer a nível técnico (passe, recepção, etc), quer a nível intelectual (opções). Tudo o resto resulta da perfeita execução disto.

Qualquer desporto colectivo deve ser entendido como um Todo. No xadrez, haverá certamente peças mais importantes que outras, mas cada uma, pelas suas características, contribui para o desempenho do conjunto. Os Peões, por exemplo, são extraordinariamente importantes na manutenção da solidez da estrutura e no fecho de linhas, ainda que sejam facilmente sacrificados. Os Cavalos, pela forma insólita como se movimentam, permitem jogadas que a Rainha, por exemplo, não permite. Todas as peças têm características próprias, mas nenhuma delas funciona sozinha. A Rainha, sozinha, é facilmente neutralizada. Cada peça deve pôr as suas propriedades ao serviço do conjunto. E só assim a máquina pode funcionar. No futebol, haverá certamente jogadores mais aptos que outros para marcar golos, como haverá outros mais aptos a construir jogo que outros, mas não o podem fazer sozinhos. Assim, se por acaso uma equipa passar um jogo inteiro a ser massacrada, a responsabilidade não pode ser necessariamente de um só jogador ou do meio-campo defensivo, uma vez que este, por si só, não pode ser capaz de suster as ofensivas do adversário. É claro que, se este meio-campo defensivo tiver um posicionamento deficiente, se se colar à defesa e abrir espaços entre esta e o meio-campo ofensivo, permite um avanço do adversário. Nesse caso, como é óbvio, tem responsabilidades no acontecido, mas unicamente porque falhou a nível posicional. Se os médios-defensivos cumprirem posicionalmente, a culpa de um constante avanço do adversário só pode ser da equipa enquanto todo, pois não é capaz de pressionar em conjunto.

O estruturalismo em futebol tem os dias contados, embora maior parte das pessoas que vêem futebol ainda o verem dessa forma. À excepção de erros individuais a nível técnico, como seja um atraso deficiente para o guarda-redes, que permite ao avançado adversário isolar-se e marcar golo, ou a nível táctico, como por exemplo um lateral que defende demasiado aberto e que permite, por isso, muito espaço entre si e o central, ou a nível intelectual, como seja um médio que recebe uma bola vinda da direita e não descongestiona o jogo para a esquerda, impossibilitando a desenvoltura ofensiva da equipa, todo o insucesso de uma equipa só pode ser explicado em termos colectivos. Se todos os jogadores cumprirem individualmente a sua posição, o fracasso só pode ter explicações colectivas. Muitos dirão: "Se todos cumprirem a sua posição na perfeição, não há como a equipa não ter sucesso." Errado. O sucesso de um conjunto depende, sim, da perfeição de cada um dos elementos desse conjunto, mas também da perfeição do conjunto, enquanto conjunto. Pouco valerá que todos os onze jogadores cumpram o que lhes está destinado se o não fizerem em conjunto. Para muitos, para uma boa posse de bola, bastará que se treine os jogadores, um por um, ensinando-o os a receber e a passar com precisão, ensinando-os a criar linhas de passe, etc. Nada mais falso. A posse de bola é uma tarefa colectiva. Pouco interessa se um jogador consegue criar linhas de passe. Se o fizer, mas ninguém precaver uma linha de passe para esse jogador, assim que receber a bola fica sem opções. A posse de bola deve ser treinada em equipa, sendo que os jogadores devem mecanizar as movimentações de forma a criarem linhas de passe constantes. Uma equipa pode ter excelentes intérpretes a nível técnico e ainda assim ter uma posse de bola deficiente. Porquê? Porque apesar da qualidade individual dos seus jogadores, que recebem, passam e criam linhas de passe como ninguém, não tem mecanismos colectivos rotinados.

Como a posse de bola, muitas outras coisas dependem unicamente do colectivo. Nenhuma equipa defende só com os defesas. Nenhuma ataca só com os atacantes. Nenhum avançado marca golos sozinho (tirando o Maradona). Nenhum jogador desarma outro se o resto da equipa não encurtar espaços e obrigar o portador da bola a encontrar-se com aquele que o desarma. Nenhum jogador recupera bolas sem a movimentação dos companheiros. É claro que há alguns que o fazem mais, por terem talvez mais apetência para isso, mas só o fazem como consequência de um trabalho colectivo. Nenhum organizador de jogo constrói o jogo sozinho: precisa que lhe entreguem a bola em condições, que os avançados se desmarquem, que os colegas criem linhas de passe. Numa equipa que não consegue ir à linha cruzar, o problema será dos extremos? Mas nenhum extremo o fará se a equipa não jogar de forma a possibilitar tal coisa. Se a equipa tem pouco volume de jogo ofensivo, a culpa será dos médios, que não conseguem municiar o ataque? Porquê? Se por acaso os laterais não jogarem interiormente, se os centrais se desfizerem da bola sem nexo para a frente, os médios nem sequer terão bolas com que fazer jogar a equipa. Se a equipa adversária consegue circular a bola em terrenos avançados, o problema é do meio-campo, que não pressiona? Claro que não! Pressionar é um acto colectivo. Pode não haver um único jogador que não corra e não pressione, que a pressão pode ainda assim não ter efeito. Porquê? Porque a pressão tem de ser simultânea. Pouco interessa que o extremo acompanhe o lateral que sobe. Se mais ninguém correr e encurtar espaços, esse trabalho defensivo é totalmente ineficaz.

Para terminar, a melhor equipa não será apenas aquela que tiver os melhores jogadores para cada posição. Será sempre aquela que tiver os melhores jogadores para cada posição e que esteja trabalhada para que cada um destes elementos sirva o colectivo. E o peso do colectivo é tão grande como o peso das individualidades. É por isso que uma equipa com elementos razoáveis, se bem mecanizada a nível colectivo, pode ser tão forte quanto uma equipa com elementos de melhor qualidade. É claro que, a jogadores de grande qualidade, que individualmente são correctos a todos os níveis, é muito mais fácil ensinar a pôr os seus atributos ao serviço do colectivo. E é por causa dessa facilidade que muitos treinadores completamente ineptos ainda vão passando por bons. Concluindo, uma equipa de futebol é uma máquina com inúmeras funções. Ao contrário de uma máquina normal, cada peça não tem uma função independente. Uma equipa de futebol não é um somatório de funções, mas um conjunto. Cada elemento dessa máquina tem todas as funções que o conjunto tem. Ou seja, nenhuma das peças da máquina tem um papel independente: todas representam o mesmo papel, mas em posições diferentes.

1 comentário:

Anónimo disse...

Grande regresso de férias :)